Textos Acadêmicos
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Maria Izabel de Carvalho. Entre a Rocinha no Brasil e Siloé na Colômbia, Quais São as Similaridades? (2019)
Resumo
Título: Entre a Rocinha no Brasil e Siloé na Colômbia, quais são as similaridades? Estudo comparativo do processo de destinação dos resíduos sólidos gerados nos dois lócus e suas formas de tratamento
Autora: Maria Izabel de Carvalho
Link: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/53495/53495.PDF
Sinopse: A presente tese tem por finalidade apresentar um estudo comparado entre a favela da Rocinha - Rio de Janeiro no Brasil e Siloé (Comuna 20) em Cali na Colômbia. A proposta foi analisar o processo de destinação dos resíduos sólidos urbanos gerados nos dois locais e suas formas de tratamento, considerando a realidade e a cultura local, mas buscando dar relevância às diferenças e similitudes de cada lócus. O percurso metodológico que ancorou o estudo apoiou-se na pesquisa de cunho documental e bibliográfico, o que nos permite ampliar o conhecimento sobre a legislação, assim como em diversas normativas, artigos acadêmicos entre outros documentos, objetivando compreender como a gestão dos resíduos é regulada nos dois países. Já a pesquisa de campo, foi ancorada na estrutura metodológica de cunho qualitativo, efetivada por meio da observação direta nos campos de estudo, o que nos proporciona tanto o alcance das informações não explícitas nas falas das entrevistas, como nos garante vivenciar as duas realidades, conhecendo os hábitos, costumes e diferenças culturais, políticas e sociais de cada grupo envolvido na pesquisa. E as entrevistas foram do tipo semiestruturadas, efetivadas nas duas localidades, o que nos proporciona realizar a escuta de diversos sujeitos envolvidos no processo de tratamento, gestão e destinação dos resíduos nas duas áreas, a saber: representantes das empresas de limpeza urbana, representantes de estabelecimentos comerciais, moradores, organizações de catadores/recicladores de materiais recicláveis e reutilizáveis, e catadores/recicladores, objetivando compreender qual é a visão de cada agente em relação à geração e destinação adequada dos resíduos sólidos urbanos em suas localidades. A sistematização dos dados, aliados às informações coletadas em conversas e provenientes da vivência nos locais, nos permite concluirmos que a política de resíduos, tanto brasileira como colombiana, trouxe melhorias socioambientais para as localidades, contudo, ainda há muito que ser realizado na perspectiva da promoção de forma igualitária da prestação de serviços na área socioambiental, principalmente, na questão da geração, tratamento e destinação adequada dos resíduos. Acreditamos que a tese poderá também subsidiar novos estudos tanto no Brasil como na Colômbia a respeito da temática."Verbetes" / Comentários / Leituras:
Geral:
i. Distâncias e proximidades Siloé e Rocinha (Magda Gomes)
Embora existam diferenças contextuais entre a Rocinha no Brasil e Siloé na Colômbia, ambas as comunidades enfrentam desafios semelhantes em relação ao tratamento dos resíduos sólidos. A principal diferença reside na abordagem específica de cada país, enquanto a semelhança se dá pela presença de informalidade e pela dificuldade de implementação de políticas públicas eficazes, as metodologias de coleta e implementação das políticas em cada território se encontram nos lugares da escassez, quando as condições de trabalho são precárias em ambos territórios.
ii. Participação Popular como dimensão pedagógica e política (Leandro Castro)
O trabalho traz a importância e urgência de pensarmos a garantia da participação popular como dimensão pedagógica, política e da gestão dos processos de formulação, implementação, monitoramento e avaliação das políticas públicas de coleta e descarte de resíduos sólidos em territórios favelados, como caminhos para uma qualidade maior da gestão sobre o lixo e uma educação socioambiental que favoreça as potencialidades das favelas e não reforce estigmas.
A questão do lixo e do saneamento básico é uma demanda histórica da Rocinha, e à medida que esta continua crescendo, as ações governamentais devem acompanhar tal fluxo, no sentido de qualificar ações e repensar estratégias eficazes que de fato possam trazer respostas às demandas do território, com a garantia de participação popular. Se a Rocinha cresceu três vezes mais que o município do Rio de Janeiro, nos perguntamos se não seria a hora de aumentar também o investimento público em políticas estruturais para a favela, que enfrentam com responsabilidade e compromisso questões tais como o lixo e saneamento básico?Citações da Tese
[1.] "Entende-se como um fator positivo o fato de alguns entrevistados da Rocinha terem uma visão crítica de que ações pontuais como palestras, capacitações ou outras, não dão conta de provocar mudanças de comportamento/atitude no tocante ao descarte inadequado de resíduos sólidos, se fazendo necessárias ações mais concretas e contínuas, que no nosso entendimento, sejam pautadas, sobretudo, na educação ambiental crítica, que contribui para o desenvolvimento de um cidadão crítico, capacita-o para a realização de reflexões sobre o mundo no qual está inserido, de modo a interferir nesse espaço de acordo com as suas necessidades" (Carvalho, 2021, p. 163).[2.] "Neste sentido, a temática dos resíduos sólidos em favelas e bairros populares, como a Rocinha no Rio de Janeiro/Brasil e em Siloé em Cali/Colômbia, tem se mostrado um problema pela ineficácia das políticas públicas; sobretudo as urbanas, nesses territórios " (Carvalho, 2021, p.145).
iii. Inclusão das favelas no Plano Nacional de Resíduos Sólidos (Lino Teixeira)
O grau de complexidade urbana, suas especificidades e o volume de resíduos verificados na Rocinha, reforçam a urgência de se incluir favelas e periferias de forma efetiva na Política Nacional de Resíduos Sólidos e de se pensar, de forma conjunta, com outras políticas públicas, especialmente aquelas relacionadas com infraestrutura urbana, nas esferas municipais e estaduais. Se por um lado, como observa a autora, o quadro atual é de retrocesso legal das capacidades de aplicação da PNRS em função justamente da incapacidade do poder público, de outro lado, é cada vez mais urgente a atenção especial e de forma efetiva aos contextos de periferias urbanas, sobretudo no atual quadro de aprofundamento da crise climática.Citações da tese
""Nesses espaços [de favela], geralmente o poder público para se eximir de sua responsabilidade, utiliza-se de justificativas como a falta de infraestrutura urbana adequada, que não oferece condições ideais para a coleta regular porta a porta, em função da existência de becos e vielas. Cabe salientar que, diante da realidade imposta, não identificamos esforços para que sejam disponibilizados recursos para a promoção da destinação adequada dos resíduos e rejeitos gerados, portanto, o próprio poder público, não garante ao cidadão morador de favela/bairro popular, na maioria das vezes, que esse possa dar um destino adequado ao resíduo por ele gerado; o que se verifica, com frequência, é o acúmulo excessivo de resíduo, ocasionador de danos, não só de ordem ambiental, mas de saúde e de baixa qualidade de vida para a população local.
Assim sendo, acreditamos que para o enfrentamento da problemática dos resíduos sólidos nesses territórios, faz-se necessário que a política pública de resíduos sólidos seja pensada conjuntamente com outras políticas públicas, que entendemos ter implicação direta nessa questão, como as políticas voltadas para o saneamento, habitação, uso e ocupação do solo, mobilidade, questões ambientais, para as políticas de desenvolvimento urbano em geral, entre outras." (p.33 e 34)iv. Resíduos urbanos e estigmas socioespaciais (Lino Teixeira)
Do ponto de vista histórico, pode-se afirmar que a associação de espaços populares com imaginários de anti-higiene está na base do surgimento de estereótipos estigmatizantes sobre moradores de favelas desde o início do século XX. Mesmo diante de evidente ausência de políticas públicas eficientes e contínuas, e sendo os mais impactados pelos problemas decorrentes da formação desigual do espaço urbano, segundo essa perspectiva ainda hoje forte no imaginário coletivo, moradores de favelas são representados como responsáveis não apenas pelos impactos negativos ambientais nas favelas, mas na cidade como um todo. Neste sentido, chamam atenção algumas falas do gestor público local da Comlurb em entrevista para a autora que demonstram o quanto esse imaginário influencia as ações cotidianas dos agentes e a própria operação da política, servindo de justificativa para a ineficácia do serviço público.Resulta do processo de estigmatização multifacetada, a desvalorização e falta de reconhecimento do lixo urbano como ativo para geração de recursos, emprego e vetor do desenvolvimento territorial e ambiental, não apenas nas favelas e periferias urbanas. Ou seja, as formas de ver o lixo impedem a realização de ações concretas, especialmente pelo poder público, de fortalecimento de práticas e grupos existentes de catadores, de experiências de reciclagem e reuso, assim como a valorização do próprio material de descarte.
Citações da tese
[1.] ""(...) a culpabilização dos moradores é uma fala, que de alguma forma, perpassou todos os grupos entrevistados, sendo atribuída a esse segmento, a falta de educação, a falta de consciência, dentre outros desqualificadores, quase que como se isso fosse uma “patologia” das pessoas que vivem em áreas populares, como se tivessem uma “disfunção/desajuste” social e como se fosse intrínseco a esses indivíduos, o déficit educacional e a falta de capacidade. Esse discurso é incorporado inclusive pelo próprio grupo de moradores, que por vez, acaba reproduzindo a retórica entre si. Mediante essa visão sobre os moradores de áreas populares, temos assistido ao longo dos anos, como formas de enfrentamento: 'o higienismo, educação e ‘refuncionalização’, adaptação (ou ajustamento corretivo) e ‘inclusão social’. A solução da pobreza mediante a 'autoajuda' e religião. O combate à pobreza mediante a 'criminalização da pobreza' (Siqueira, 2014. p. 242)." (p.151 e p.152)[2.] Fala do gestor local do serviço de limpeza urbana – "A gente conta com a colaboração dos moradores, né? Porque em toda Estrada da Gávea você tem recipiente pra que possa ser armazenado o lixo, né? E assim, a gente ainda tem um tratorzinho que faz a Cachopa, que faz a Vila Verde, que faz a Dioneia... a gente tem também um caminhãozinho (...) que entra nessas áreas também (...). Agora onde são vielas, a gente tem a moto triciclo que faz a coleta (...). O resto fica aí na responsabilidade dos moradores, trazer pros pontos estratégicos que a gente tem. (...) A gente tem toda uma logística de armazenamento do lixo pelo morador (ELUBR1. Entrevista concedida a Maria Izabel de Carvalho. Rio de Janeiro, 02 out. 2020)." (p.172)
v. Ineficiência no serviço de coleta e impactos ambientais
Hoje, o maior problema da Rocinha é a alta produção de lixo: mais de 140 toneladas/dia são recolhidas da comunidade. Segundo Maria Izabel de Carvalho, a COMLURB conta, para além de seu efetivo, com apoio de um pouco mais de 30 garis comunitários, justamente para acessar algumas vias consideradas não carroçáveis. A COMLURB adotou como alternativa, a distribuição de pontos de lixo ao longo da via principal para facilitar a coleta. Todavia, não dá vazão, pois o acúmulo de lixo é maior do que o coletado. Esse descompasso, além de agravar o quadro sanitário, afeta as bacias hidrográficas da Lagoa Rodrigo de Freitas e de São Conrado, acarretando problemas ambientais e econômicos que, com as chuvas, podem ser graves para toda a Zona Sul do Rio de Janeiro.
Leituras Cruzadas – Tema Habitação / Condições de Urbanização
vi. Desafios da mobilidade urbana na Rocinha (Lino Teixeira)
Além das condições topográficas e infraestruturais associadas à densidade construída e populacional que dificultam a gestão dos resíduos, um fator determinante das condições urbanas da Rocinha consiste na mobilidade urbana: a estrutura viária e a falta de acessibilidade por vias carroçáveis a todos os espaços da Rocinha são especificidades do território que oferecem desafios para a implementação de uma política eficaz de lixo. Apesar da utilização de variadas escalas de veículos de coleta e da cobertura a pé pelos profissionais nas áreas sem acesso motorizado, a logística e a vazão do serviço de limpeza urbana não conseguem absorver o volume de resíduos descartados na Rocinha.Leituras Cruzadas – Tema População:
vii. População, densidade e desafios de gestão dos resíduos (Lino Teixeira)
O território da Rocinha combina um grande contingente populacional, altíssima densidade e condições urbanas marcadas pela inexistência de políticas públicas eficazes e estruturantes. Estes fatores associados constituem um contexto complexo para a gestão do lixo urbano, sobretudo se levarmos em conta a influência decisiva que o conjunto de estigmas que associam os moradores à culpabilização pelos problemas socioambientais exercem sobre as políticas públicas.
Os mais de 70.000 moradores distribuídos em cerca de 1,5Km2, com densidade populacional de 48,3 mil habitantes por Km2, fazem da Rocinha o bairro mais denso do Brasil (Censo IBGE, 2022). Dentro deste recorte espacial, segundo dados da Comlurb levantados pela autora, são coletadas cerca de 700 toneladas por semana, ou 100 toneladas por dia, de resíduos sólidos provenientes das residências, comércios, serviços ou indústrias locais. Como ressalta Maria Izabel de Carvalho, esse volume de resíduos movimentado na Rocinha, traz números que se assemelham aos de uma cidade média.Citações
"(...) a temática dos resíduos sólidos em favelas e bairros populares, como a Rocinha no Rio de Janeiro/Brasil e em Siloé em Cali/Colômbia, tem se mostrado um problema pela ineficácia das políticas públicas; sobretudo as urbanas, nesses territórios. (...) A precarização de serviços nessas áreas há muitos anos vem sendo justificada pelo fato de as empresas de limpeza urbana esbarrarem na deficiente infraestrutura desses locais (...)." (p.145 e 146)Leituras Cruzadas – Trabalho e Renda:
viii. Economia da coleta e conscientização (Magda Gomes)
Atualmente iniciativas como a cooperativa "ÓLEO NO PONTO" demonstram o potencial da coleta de resíduos como geradora de renda. No entanto, a economia informal predomina, e muitos moradores não enxergam a coleta de resíduos como um serviço formalizado além do aspecto cultural de ainda ser considerado por muitos um "emprego subalternizado e vergonhoso". Regularizar a profissão e conscientizar a população sobre os direitos ao descarte adequado são passos fundamentais, que podem em período investido de tempo e recursos transformar a realidade de coleta de resíduos nas comunidades.Leituras Cruzadas – Raça e Gênero:
ix. Raça e gênero: racismo ambiental e barreiras de acesso (Magda Gomes)
Ao longo da leitura da tese, não foi observado um aprofundamento significativo nos aspectos de gênero e raça. Em geral, as palavras foram mencionadas da seguinte forma: 8 vezes "mulheres", 3 vezes "negros", 1 vez "pardo" e 2 vezes "indígenas". Considerando que o problema do lixo nas comunidades afeta majoritariamente a população negra, seria importante dedicar um capítulo a essa questão. O racismo ambiental é um fator fundamental que coloca essa população em uma situação de maior vulnerabilidade social. Um olhar aprofundado sobre os aspectos de raça e gênero, bem como os impactos da falta de acesso à coleta de resíduos sólidos, saneamento básico e condições de bem viver, é crucial. Tais questões empurram ainda mais essa população para as rugosidades da sociedade.x. Questões sobre gênero e trabalho (Magda Gomes)
A questão socioambiental está intrinsecamente ligada ao manejo dos resíduos sólidos nas favelas. A percepção dos moradores sobre a destinação dos resíduos é influenciada por fatores como nível de escolaridade e idade, predominando a faixa etária entre 40 e 55 anos, majoritariamente do gênero masculino. Há alguma correlação em pensar as condições físicas do gênero impactando na condição da coleta que em consequência afetaria a quantidade? Uma provocação que me faz pensar sobre as condições de trabalho para as mulheres e a distribuição das tarefas associada às condições físicas.
Citações da tese
"Em Siloé, no tocante ao pagamento aos recicladores associados, sondamos se havia alguma diferença em relação à remuneração entre homens e mulheres, porém segundo os entrevistados não há nenhuma distinção, pois o pagamento é feito de acordo com o volume de material coletado por cada pessoa, independente do gênero. E segundo uma das associações desse território, é muito comum haver casais desenvolvendo a atividade de catação." (p. 196)xi. Espaço da favela e dimensão racial: convivência e solidariedade (Magda Gomes)
O espaço da favela como um local em que grande parte dos moradores, que são em sua maioria negros (pretos e pardos) e descendentes de indígenas que vivem na precariedade sem investimento do Estado, no reflexo dessa configuração sobrevivem em um local altamente adensado, ainda assim cria-se uma relação de vizinhança e troca entre os moradores mesmo com os problemas estruturais, com infraestrutura urbana precarizada, as relações de convivência e as relações afetivas entre a vizinhança é um ponto marcado na comunidade como um processo mútuo de ajuda.
Citações da tese
"Na contramão dessa representação que geralmente se tem a respeito das favelas, o Observatório de Favelas acredita que a sua definição não deve ser construída com base no que nela não existe, mas a partir da sua singularidade socioterritorial, servindo de referência para a elaboração de políticas públicas que atendam a sua realidade. Para essa instituição, portanto, a favela é um território constituinte da cidade e que se caracteriza, total ou parcialmente, pelas seguintes características:
Insuficiência histórica de investimentos do Estado e do mercado formal, principalmente o imobiliário, financeiro e de serviços; Forte estigmatização socioespacial, especialmente inferida por moradores de outras áreas da cidade; Edificações predominantemente caracterizadas pela autoconstrução, que não se orientam pelos parâmetros definidos pelo Estado; Apropriação social do território com uso predominante para fins de moradia; Ocupação marcada pela alta densidade de habitações; Indicadores educacionais, econômicos e ambientais abaixo da média do conjunto da cidade; Níveis elevados de subemprego e informalidade nas relações de trabalho; Taxa de densidade demográfica acima da média do conjunto da cidade; Ocupação de sítios urbanos marcados por um alto grau de vulnerabilidade ambiental; Alta concentração de negros (pardos e pretos) e descendentes de indígenas, de acordo com a região brasileira; Grau de soberania por parte do Estado inferior à média do conjunto da cidade; Alta incidência de situações de violência, sobretudo a letal, acima da média da cidade; Relações de vizinhança marcadas por intensa sociabilidade, com forte valorização dos espaços comuns como lugar de convivência (Silva, 2009, p. 22-23)." (p.30)